“Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?”
– Álvaro de Campos, Poema em Linha Reta
Provocado pelas discussões desencadeadas com a publicação do texto “Anarquistas em defesa do voto em Lula”, na Jacobin Brasil, gostaria de compartilhar uma modesta contribuição para estimular diálogos mais construtivos e colaborativos entre as diversas perspectivas do campo antifascista no Brasil.
Não é simples falar a partir de uma heterogênea tradição de pensamento e luta, como o anarquismo, sem ser interpelado de forma duramente crítica, ou até mesmo hostil. De certa forma, isso era de se esperar, visto que o anarquismo, ao contrário de outras ideologias políticas, não se sustentou como um conjunto doutrinário nominado a um grande autor e seus intérpretes escolásticos. Daí a leitura rasa, embora corrente, de que o anarquismo “careceria de teoria”.
As últimas duas décadas viram uma retomada de interesse pelo anarquismo, pelo menos, desde as chamadas movimentações da Ação Global dos Povos (AGP) e da onda altermundialista, que dialogaram, e foram estimuladas, pelo inesperado levante zapatista em Chiapas de 1994. Primavera árabe, Occupy Wall Street, Plaza del Sol, Levante de Junho de 2013 no Brasil e etc., foram fenômenos efervescentes, que atravessaram a política no alvorecer do século XXI, e se expressaram como condutores de práticas e ideias anarquistas de um modo até então imprevisto.
“Um dos principais elementos alavancados por este renascimento anarquista é a centralidade dada à questão da autonomia como horizonte político, social, econômico, individual e coletivo.”
Isso não quer dizer, naturalmente, que “o anarquismo” tenha se tornado um “ator político” relevante no sentido clássico como sindicatos e partidos políticos o são no espectro das instituições de poder. Muito menos que tenha militância expressiva a ponto de definir o curso da balança em determinados cenários políticos.
Correndo o risco de ser também mal interpretado, e canalizar algumas chispas da intransigência militante (dos mais variados quadrantes da esquerda), como anarquista gostaria de compartilhar minha visão sobre a papel e o significado da reemergência do anarquismo nas sociedades contemporâneas, com um pequeno destaque para a atual conjuntura política brasileira, que vivenciamos com muita angústia.
Anarquismo para além da bolha
Partilho a visão do militante e teórico anarquista Tomás Ibañez quando considera a força que determinados valores e práticas oriundas do universo libertário adquiriu ao se inserir e ganhar capilaridade em muitos movimentos sociais ao redor do mundo, e mesmo nas práticas cotidianas de pessoas comuns não organizadas. O “anarquismo extra-muros”, como Ibañez define, me parece muito mais significativo do que o anarquismo como identidade política (e quando digo significativo, estou longe de considerar desprezível o outro aspecto). Até uma nova gramática acompanha esse florescimento anárquico e introduz nos discursos, reflexões e agendas de vários movimentos e intelectuais (incluindo o marxismo que quer se oxigenar) conceitos “novos” como horizontalidade, autogestão, autogoverno, prefiguração, transnacionalismo e assim por diante.
Por outro lado, há que reconhecer o aparecimento de novas organizações anarquistas nas últimas décadas em várias partes, assim como a retomada de uma produção intelectual séria a este respeito. Isso certamente retroalimenta a questão anterior, e contribui para dar forma a diversas expressões do anarquismo enquanto identidade política.
Talvez um dos principais elementos alavancados por este renascimento anarquista seja a centralidade dada à questão da autonomia como horizonte político, social, econômico, individual e coletivo. A já conhecida crítica do filósofo grego Cornelius Castoriadis sobre os regimes de heteronomia se enriqueceu e se beneficiou com o giro anárquico. Daí as possibilidades de não se limitar apenas às críticas correntes a uma economia neoliberal, cada vez mais oligarquizada e excludente, que poderia ser socializada a partir da recuperação e recondução dos poderes dos Estados Nacionais, em mãos de representantes das camadas populares. Um truísmo para a tradição anarquista que nas letras de um Foucault ou de marxistas como Negri, Hardt, Holloway, Agamben e Rancière, surpreende e tende a convencer mais.
“Há um terreno próprio da ação anarquista que vem sendo reivindicado por esta complexa tradição de pensamento e luta desde seu aparecimento, há mais de 150 anos: ação direta”
O ponto é o seguinte: há muitas ideias e valores anarquistas que povoam com renovada vitalidade a atmosfera política do nosso tempo. Existem pessoas e organizações que se expressam de forma plural através delas como parte de sua identidade política. Essas pessoas em particular são seres humanos comuns como eu e você: mães, pais, adolescentes, estudantes, assalariados no setor público ou privado, pequenos empresários e desempregados. Como tais estão imersos em um conjunto de obrigações ou imperativos ligados tanto à sobrevivência material quanto aos constrangimentos simbólicos de existirem em uma sociedade assimétrica e recortada por classes, racismo, misoginia, entre outras formas de opressão.
O desejo de assumir essa identidade política não produz o desmantelamento imediato desse mundo. E esse não é um grande problema: constatar e viver a contradição entre desejar um mundo diferente e ter que lidar com uma realidade que o contraria. O problema crucial é: como nos relacionamos com essas barreiras, contrariedades e contradições? Qual a atitude anárquica possível, para cada um, em cada contexto, que permita ampliar espaços de autonomia e liberdade?
Há um terreno próprio da ação anarquista que vem sendo reivindicado por esta complexa tradição de pensamento e luta desde seu aparecimento, há mais de 150 anos: ação direta, “nós por nós mesmos”, reverberados com a ferocidade com a qual nos opomos a qualquer um que queira nos governar, visando subverter e superar mediações que se convertem em hierarquias e formas de dominação. Esses são os princípios e pressupostos fundacionais, me parece, dessa visão de mundo. Engana-se quem a reduz à esfera da política e aversão ao voto.
Tudo isso nos leva inevitavelmente ao terreno da auto-organização social: o esforço militante para que as pessoas possam tomar as rédeas sobre suas próprias vidas, nos mais diversos espaços nos quais elas se encontram com suas singularidades, seja no trabalho, no território ou na vida cotidiana. Criar e fortalecer espaços associativos e comunitários, experiências autogestionárias, para arrancar autonomia onde prevaleça heteronomia. Combater todas as formas de dominação que impeçam o florescimento da autonomia, individual e coletiva (“o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas”, já diziam os clássicos).
O que esperar dos anarquistas nas eleições?
“O verdadeiro anarquista é aquele que se libertou totalmente do preconceito sectarista, colabora em todos os grupos, atua em qualquer tendência. Mais ainda, coopera com os não-anarquistas onde quer que a ação deles incremente a oposição revolucionária”.
José Oiticica, Contra o Sectarismo (Ação Direta. Rio, 10.01.1929)
Vivemos hoje uma conjuntura política no Brasil que não apenas assusta, mas efetivamente ameaça o pouco de ordem “democrático-liberal e cidadã” que foi obtida pela política de conciliação forjada na nova República, agora em frangalhos. Bolsonaro, seus generais e pastores representam a ala da extrema direita fascista e fundamentalista religiosa que pode, a depender da correlação de forças e dos interesses dos de cima, instaurar um novo regime de exceção no país (embora seja outro truísmo anarquista, e leitores de Walter Benjamin o sabem, todo Estado é um Estado de Exceção). Provavelmente estamos de novo diante de uma bifurcação da história. E mesmo que a candidatura de oposição vença o pleito, a colheita será amarga e o bolsonarismo, como sintoma tropical de algo global, não irá desaparecer facilmente.
Com isso quero dizer que, no plano da política institucional, é óbvio, desejável e preferível que Bolsonaro seja derrotado. Porém, o que isso tem a ver com os anarquistas? Na minha perspectiva, individualmente, não me parece uma heresia votar. Os zapatistas que não são anarquistas e não votam, ao dialogar com a sociedade civil em contextos eleitorais sempre insistiram em um aspecto: “votando ou não, se organize”. E se algumas pessoas que se identificam como anarquistas optarem por votar (especialmente as não organizadas, onde tais aflições devem ecoar mais) isso não deveria nos colocar numa posição inquisitória.
“Como diria o pedreiro anarquista Lucio Urtubia: ‘soy anarquista porque creo que puedo hacer lo que me da las ganas’.”
Conheço anarquistas casados e monogâmicos, que têm filhos e família, outros que são religiosos e muito espiritualizados, contrariando estereótipos de dentro e de fora do movimento. Há questões morais relacionadas com nossa identidade política que deveriam ser tratadas com mais leveza, já que transformações destinadas a evadir o debate hermético das redes sociais ou o espírito de seita autocentrado, envolvendo nossa mais profunda imersão nesse mundo, serão inevitavelmente processuais, controversas, relacionais e cheias de reviravoltas.
Como diria o pedreiro anarquista Lucio Urtubia: “soy anarquista porque creo que puedo hacer lo que me da las ganas”. Salvo princípios mais elementares assinalados anteriormente, e o compromisso responsável com a liberdade e a igualdade para superarmos uma sociedade de senhores e escravos, em suas mais variadas expressões, nada é mais alheio e paradoxal ao universo anarquista do que querer estabelecer um anarcômetro.
Ou seja, sob uma ética libertária, viver as contradições com consciência do que elas representam ou deixam de representar é uma questão de foro íntimo, desde que assumido voluntariamente e não se torne um imperativo moral para a vida dos demais. Outra coisa bem distinta, no entanto, é tentar vincular as pessoas que se identificam enquanto tal a uma determinada posição política conjuntural uniforme. Nada contra conclamas ou manifestos. Também há espaço e liberdade para isso, assim como há espaço para aderir ou não a eles. Entretanto, seria mais coerente que as organizações identificadas como anarquistas os fizessem, se acreditassem que taticamente teriam peso e relevância política para isso. E a verdade é que não têm, reconheçamos.
Os anarquistas foram os mais firmes e abnegados lutadores antifascistas do mundo moderno. Muitos pagaram com a vida por suas posições. Portanto, seria mais justo e generoso convocar “as forças anarquistas” para que elas façam, entre aqueles que queiram fazer isso ombro a ombro, a “política das ruas”, “a resistência”, o trabalho de base, a propaganda e difusão de ideias anti-autoritárias, as mobilizações cara a cara com as pessoas nos territórios. Aqui reside a verdadeira força e energia vital do anarquismo. Esse é o seu terreno. Essa é a sua contribuição para uma luta política com horizonte emancipatório.
“Pensem em nós, fundamentalmente, como jardineiros e semeadores de valores e práticas antissistêmicos e autônomos.”
O anarquismo provavelmente não será a tábua de esmeralda do nosso tempo. Tampouco podemos querer tratar os anarquistas como semideuses de ilibada moral revolucionária (apesar de que nesse meio, o apelo por uma atitude ética possui um lugar pouco observado na maioria das ideologias políticas modernas). Há pessoas e organizações muito dignas que estão fazendo nesse momento um trabalho silencioso por esse “mundo novo que carregamos em nossos corações”. Evitemos fazer do apelo ao voto uma chantagem.
Pelo cálculo do voto, se há “culpados” pela presença do Bolsonaro na presidência da República, são precisamente os seus eleitores (boa parte deles, inclusive, já foram eleitores do lulismo também). Francamente, nós anarquistas somos poucos e irrelevantes enquanto contingente eleitoral. E talvez continuemos assim mesmo pequenos e incômodos – por mais um bom tempo ainda. Pensem em nós, fundamentalmente, como jardineiros e semeadores de valores e práticas antissistêmicos e autônomos, num momento em que o tempo parece fechar, rebaixando de forma atroz os limites da nossa imaginação política e os horizontes do possível.
Sobre os autores
é sociólogo, professor e pesquisador (UFFS e CLACSO), e membro da coordenação da seção sindical dos docentes da UFFS (SINDUFFS).